O Conselho da Comunidade de São Paulo
Carlos Weis e Álvaro de Aquino e Silva Gullo[1]
O Conselho da Comunidade é um órgão criado pelos artigos 61, 80 e 81 da Lei de Execução Penal, destinado a aproximar a comunidade do sistema penitenciário, com o intuito de propiciar assistência, auxiliar na reintegração do condenado, evitar a reincidência e verificar as condições carcerárias.
A criação do Conselho da Comunidade parte da premissa de que é de toda a comunidade a tarefa de evitar que os condenados reincidam criminalmente, e não apenas do Governo. Isso porque os criminosos, assim como todos os seres humanos, têm uma vocação natural para viver em sociedade. No momento da sua volta ao meio livre, o egresso buscará outras pessoas para manter vínculos sociais e encontrar meios de sobrevivência, sendo a todos desejável que haja quem possa lhe abrir oportunidades de recomeçar a vida dignamente.
Por outro lado, se o egresso encontrar todas as portas fechadas, certamente se valerá dos laços criados no cárcere e voltará ao caminho do crime, realimentando a saga de insegurança pela qual passamos.
Por isso, o Conselho da Comunidade tem como meta aproximar a sociedade do meio carcerário, desfazendo idéias preconcebidas e articulando oportunidades para os que querem reconstruir sua vida de maneira digna.
Em face disso, cada vez mais os órgãos públicos vêm estimulando a criação e o fortalecimento dos Conselhos da Comunidade, como é o caso do Ministério da Justiça e do Conselho Nacional de Justiça, pois sabem que somente com a participação de todos é que restabelecerá a segurança pública em nosso país.
No caso da Comarca de São Paulo, o Conselho da Comunidade veio a ser instalado em 9 de março de 2005, pela portaria nº 04 do então Juiz Corregedor dos Presídios e da Vara das Execuções Criminais, Dr. Miguel Marques e Silva, sendo certo que seu predecessor, Dr. Octávio Augusto Machado de Barros Filho já iniciara os passos nesse sentido.
Desde então o Conselho da Comunidade de São Paulo – SP vem tomando medidas relacionadas à sua estruturação e ao desempenho de suas atividades, o que será brevemente sumariado neste texto, como forma de contribuir para a reflexão dos leitores.
A respeito da estruturação, com o desenvolver das atividades mostrou-se necessária a normatização do funcionamento do órgão, o que acabou se conformando com a aprovação do regimento interno,em outubro de 2006, aqui valendo lembrar que, para nossa felicidade, tal documento foi adotado pela Cartilha de Conselhos da Comunidade do Ministério da Justiça como modelo de inspiração para outros conselhos que eventualmente decidam se estruturar da mesma forma.[2]
A edição de Regimento Interno, necessariamente fruto das observações de todos os membros do colegiado, revela importância, não só para organizar o funcionamento do órgão, mas para conferir plena respeitabilidade do órgão junto à comunidade local, especialmente quando se vai em busca de novas parcerias e para a apresentação e o desenvolvimento de projetos relativos à área carcerária.
Sem dúvida, para pessoas e instituições que nunca ouviram falar do Conselho da Comunidade (CCom), a apresentação de um órgão devidamente estruturado, com diretoria eleita e regras de funcionamento claras, garante uma interlocução qualificada e a “abertura de portas” junto à sociedade, muitas vezes desconfiada de qualquer iniciativa que diga respeito ao sistema penitenciário.
Além disso, a insuficiente regulamentação do funcionamento dos Conselhos de Comunidade pela Lei de Execução Penal exige que os próprios órgãos se encarreguem dessa tarefa, não sem aqui se observar que a omissão legislativa cria uma série de dúvidas conceituais que somente serão superadas com o advento de revisão da LEP, como, por exemplo, a relação entre o Conselho e o Poder Judiciário, a natureza jurídica do órgão, se deve se constituir na forma de pessoa jurídica etc.
Ainda quanto ao Regimento Interno, este dispõe sobre a estrutura do Conselho, as atribuições de cada órgão, o modo de escolha de seus membros, de suspensão e de perda do mandato, a eleição da diretoria, o quórum para instalação dos trabalhos e votação das matérias, a forma dos relatórios de visita e o modo de seu encaminhamento etc.
Outro aspecto que se mostrou relevante foi a correta escolha dos integrantes do Conselho, seja para promover uma maior representatividade social, seja para buscar membros que efetivamente se dispusessem a trabalhar em prol da reinserção dos condenados.
Assim, da composição inicial de vinte membros, atualmente o CCOM-SP tem previsão de trinta conselheiros e conselheiras, abrangendo as mais diversas ocupações, (médicos, religiosos, escritores, sociólogos, dentistas, empresários, juristas etc.) inclusive contando com a relevantíssima presença de um ex-presidiário, fundamental para o correto direcionamento das atividades.
Além disso, há pessoas que integram o Conselho primordialmente pela ligação que possuem com outro órgão ou instituição, cuja presença no Conselho se faz relevante, de modo que, além dos representantes obrigatórios (membro da Ordem dos Advogados do Brasil, do Conselho Regional de Serviço social e da Associação Comercial ou Industrial) mais e mais atores sociais sejam incorporados e possam, em seus locais de origem, se converterem em embaixadores do Conselho.
Em todo caso, sempre temos ressaltado que os membros do Conselho se apresentem nessa condições em visitas a unidades penais, reuniões etc., nunca como membros desta ou aquela entidade, empresa ou instituição, de modo a marcar sua atuação conforme previsto pela LEP e afastando qualquer confusão com suas demais atividades. Há que se lembrar que a participação no Conselho é voluntária, devendo seus membros ter em mente a alta relevância e responsabilidade de suas funções.
Por isso, imagina-se o Conselho como órgão de articulação de políticas públicas na área penitenciária, reunindo em seu seio pessoas advindas da sociedade civil organizada e, com elas, tecendo redes que envolvam os demais órgãos da execução penal, notadamente o Poder Judiciário e a Secretaria de Administração Penitenciária (ou equivalente).
Para evitar a perpetuação das pessoas e o natural enfraquecimento de seu grau de participação, decidiu-se que o mandato dos Conselheiros/as é de dois anos, renovável pelo plenário, mediante referendo do Juiz da Execução. A diretoria possui mandato de um ano, com possibilidade de uma recondução.
Diz a Lei de Execução Penal que ao Conselho da Comunidade incumbe:
I - visitar, pelo menos mensalmente, os estabelecimentos penais existentes na comarca;
II - entrevistar presos;
III - apresentar relatórios mensais ao Juiz da Execução e ao Conselho Penitenciário;
IV - diligenciar a obtenção de recursos materiais e humanos para melhor assistência ao preso ou internado, em harmonia com a direção do estabelecimento.
Diante disso, pode-se dizer que as atividades do Conselho podem ser divididas em duas categorias, as de fiscalização e as assistenciais.
No primeiro caso, temos enfatizado que o CCom é a única entidade que possui o mandato de fiscalizar as unidades penais não só para diagnosticar os problemas, mas para buscar soluções que melhorem a situação prisional, em parceria com a administração do estabelecimento, sempre que possível.
Na realização de visitas o CCom-SP busca levantar todos os aspectos da unidade penal, para tanto se valendo de formulário inspirado em modelos do Departamento Penitenciário Nacional e da Pastoral Carcerária, principiando por entrevista com o diretor do estabelecimento e prosseguindo com a visita aos pavilhões, sendo fundamental conversar com os presos reservadamente.
Das visitas são elaborados relatórios que, por determinação legal, são encaminhados ao Juiz da Execução e ao Conselho Penitenciário Estadual, ficando o Conselho atento para saber se as irregularidades a sugestões anotadas foram observadas. Por isso, passou-se a distribuir os Conselheiros em equipes que, periodicamente, deverão visitar os mesmos estabelecimentos penais, a fim de verificar o desenvolvimento dos trabalhos.
Acreditamos que, assim, será mais bem desempenhada uma das missões para as quais foi imaginado o Conselho da Comunidade.
A respeito da outra vertente, a assistencialista, o CCom-SP optou por não desenvolver atividades diretas junto ao sistema penitenciário, senão que buscar estabelecer pontes entre as necessidades locais e as possibilidades da sociedade, o que decorre, ainda, de sua não estruturação como pessoa jurídica.
Como já mencionado, a LEP deixou sem solução a questão da natureza jurídica do Conselho, se é pessoa jurídica de direito público, de direito privado ou alguma terceira modalidade.
Após muitas discussões a respeito, entendemos que não seria correto converter o CCom-SP em associação civil, visto que possui destinação eminentemente pública, além do que, é integrada por membros que podem ser cambiados pelo vencimento de mandatos, o que forçaria excluí-los da própria sociedade.
Espera-se que a reforma legislativa reformule essa questão, assim como aponte qual o relacionamento que o Conselho deve ter com o Juiz da Execução, se de coordenação ou subordinação.
Na realidade, imaginamos que a primeira alternativa seja a mais correta, visto que, nitidamente, o Conselho é uma forma de participação social no desenvolvimento das políticas públicas de Estado, numa forma de exercício da democracia participativa, criada pela LEP em 1984, sob os mesmos “ventos” que inspiraram a Constituição da República de 1988.
Desta forma, ainda que deva informar ao Juiz da Execução sobre suas atividades, isso deve ser feito para que este, como garante maior da legalidade no cumprimento das penas[3], tenha ciência do que se passa nos cárceres e tome as medidas adequadas. Bem por isso é que o Conselho Nacional de Justiça determinou que os Juízes de Execução compusessem e instalassem os Conselhos da Comunidade, o que sobreveio em ato administrativo voltado à garantia de observância das normas legais pelos magistrados junto às unidades penais brasileiras.[4]
Logo, é de se convir que a própria composição do Conselho seja realizada paritariamente entre o Poder Judiciário e a sociedade civil, sendo que o CCom-SP adotou normatização segundo a qual os Conselheiros podem sugerir nomes para que o Plenário os eleja (ou não), os quais deverão ser submetidos a referendo judicial.
Assim pode-se dizer que o Conselho da Comunidade é um órgão criado pela Lei de Execução Penal e instalado por um ato do Juiz de Execução Penal em cada comarca onde haja pessoas cumprindo pena de prisão, não havendo razão para que em comarcas em que haja mais que um juiz de execução seja aumentado o número de conselhos, visto que a comunidade local é uma só.
Mas é bom frisar que o Conselho da Comunidade não está vinculado ao Estado e dele não costuma receber recursos regularmente, salvo nos caso em que se converte em pessoa jurídica.
Nesses quatro anos de existência, o CCom-SP desenvolveu dezenas de visitas a unidades penais, resultando em relatórios e sugestões que, em alguns casos, possibilitaram melhoria das condições carcerárias
Além disso, entrevistou-se regularmente com o titular da Secretaria de Administração Penitenciária e com o Juiz da Execução, com quem discutiu os problemas e elaborou propostas de melhoria do sistema penitenciário.
O significado social do Conselho da Comunidade fica evidenciado na reciprocidade de seu trabalho, ou seja, ao prestar assistência aos presos, está prestando assistência maior à sociedade.
Na medida em que procura conseguir melhores condições nos presídios, facilitando o cumprimento da pena através de alojamentos adequados, atendimento à saúde, provimento de lazer, preparo educacional, atividades ocupacionais, respeito aos direitos humanos, assistência jurídica, aproximação familiar e apoio psicológico, estará oferecendo melhores condições de segurança nos presídios e dessa forma contribuindo para a consecução do processo de ressocialização e o preparo adequado para a reinserção social e a conseqüente reintegração dos egressos.
Aqueles que assumem essa tarefa social devem ter a consciência de que sua contribuição para o bem estar da sociedade é um objetivo que extrapola os problemas pessoais e os interesses imediatos, inserindo-os no âmbito de uma missão social de inegável valor ético e moral, cujos resultados se evidenciam no aprimoramento do ser humano.
Justifica-se, portanto o sentido do legislador que ao atribuir implicitamente este papel social ao Conselho da Comunidade, possibilitou o desenvolvimento de um importante elo de ligação entre o poder público e a comunidade, estabelecendo uma relação de colaboração cujo suporte institucional legitima as decisões legais das autoridades constituídas, num benefício mútuo do ponto de vista decisório.
Por tudo isso, ainda que seja enorme a tarefa que se apresenta, podemos afirmar, sem erro, que o Conselho da Comunidade tem desempenhando papel relevante no acompanhamento da execução penal na Comarca de São Paulo.
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[1] CARLOS WEIS é Defensor Público do Estado de São Paulo e presidiu o Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo no biênio 2007/2009.
ÁLVARO DE AQUINO E SILVA GULLO é Professor Titular de Sociologia da Universidade de São Paulo e é Secretário-executivo do Conselho da Comunidade da Comarca de São Paulo.
[2] http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJD46457E9ITEMID73E7AF8064A64EDE92A30E2CF3A47B7BPTBRIE.htm[3] Nos moldes do que prevê o artigo 66 da LEP, segundo o qual incumbe ao Juiz da Execução zelar pelo correto cumprimento da pena e da medida de segurança;
[4] Resolução CNJ nº 47, de 18 de dezembro de 2007.